Que nem limão

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quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Carta para os estudantes

Queridos estudantes, 

hoje, passando pelo corredor da Universidade, li uma frase que dizia mais ou menos assim: Por que eu me sinto frustrado quando não atinjo o resultado desejado? Era um de uma série de cartazes, produzidos para lembrar a nós, professores, o quanto a formação que produzimos e oferecemos é opressiva e exigente. Partindo do princípio de ser uma das receptoras da frase enunciada, resolvi respondê-la ali mesmo, no próprio cartaz. Com um caneta de outra cor, para indicar a minha posição de enunciação, desenhei um "S" bem grande e acrescentei uma "/" que lhe atravessava de fora a fora. Eis a minha resposta: se nos sentimos frustrados ao não atingir o resultado desejado é porque somos barrados. E não há nada que possamos fazer, do lado de cá, para mudar essa situação. Não importa quantas necessidades se delineiem do lado de lá. 

Notem: eu fiz uma separação aqui: o lado de cá e o lado de lá. E o fiz propositalmente com um objetivo claro que é contar o que eu senti com a intervenção que vocês fizeram. 

Eu voltava do meu almoço, com poucos minutos para pegar um projetor e ir para uma aula de reposição. Uma das muitas que eu, e todos os outros, demos nas últimas semanas, aulas que elevaram substancialmente nossa quantidade semanal de trabalho, pois, como eu disse antes, ao entrarmos em uma sala de aula, o que oferecemos é um produto e ele é resultado de nosso trabalho. Ele nunca começa ali, naquela hora e minuto específicos. E também não termina ali. 

Ele é produzido antes de chegar à aula e prossegue sendo tecido, cuidadosamente nas nossas mesas domésticas de trabalho. E vocês sabem disso. E como sabem? Por que vocês vêm aqui em casa, me abordam no supermercado, ou no restaurante quando eu estou com meu namorado, ou no semáforo quando eu estou levando meu pai ao médico. E aí vocês podem dizer: nunca fui à sua casa, professora. Ou abordei você no supermercado. Ou enquanto você levava seu pai ao médico. E eu digo: sim, vocês fez todas essas coisas e fez porque eu aceitei sua solicitação de amizade no Facebook. Fez porque eu dei meu número de telefone e respondi no Whatsapp. Percebam: eu abri a porta da minha casa e deixei vocês me acessarem no semáforo. Então, isso não é uma reclamação, mas uma constatação. E eu arco com as consequências disso, respondendo quanto e se acho que devo.

Mas eu me dispersei, como é do meu feitio. Eu voltava do meu almoço, e cheguei em um corredor tomado por vocês. E vocês estavam vestidos em camisas de força. E vocês estavam amordaçados. E vocês carregavam placas em que falavam sobre sofrimento psíquico. Vocês eram vários, e fizeram duas fileiras, uma de cada lado do corredor. O corredor que eu uso para chegar ao meu local de trabalho. Eu poderia recuar e dar a volta. Não passar por vocês. Mas se eu fizesse isso, estaria de alguma forma dizendo que sinto vergonha de ser professora. Que sinto vergonha em fazer uma avaliação que exige dedicação e pensamento. Que sinto vergonha em fazer chamada exigindo assiduidade. Que sinto vergonha em deixar claro que a aula tem hora para começar e para terminar. E eu não sinto. Que disciplinadora, vocês podem dizer. E eu respondo: sim, sobretudo quando meu trabalho envolve dinheiro público.

A visão da intervenção de vocês foi a visão de um corredor polonês. Que é uma técnica de tortura. Eu poderia parar no ponto que sucedeu a palavra "tortura", mas vou prosseguir, porque hoje eu não vou dourar a pílula. Vocês não estavam munidos de bastões, nem lanças, nem cintos. Vocês sequer falaram. Mas vocês fizeram uso de linguagem. Através de suas placas descrevendo sintomas de sofrimento. De seus jalecos representando camisas de força. Da câmera de celular ligada enquanto passávamos. Eu passei por um corredor polonês, em que os agressores usaram a arma mais potente e perigosa de todas: a linguagem.

E não só eu. E por isso, através desse texto, eu abraço cada colega meu que tenha atravessado esse corredor e sentido isso. Cada colega meu que ouviu a carta de vocês e não conseguiu esboçar reação. Eu não ouvi a carta que vocês leram na reunião que sempre está aberta a vocês. Eu fui, como disse, fazer a minha reposição. Se lá eu estivesse, naquele momento, vocês teriam me ouvido, porque a palavra é feita para ser usada em várias vias. A unilateralidade não cabe a ela.

Vou contar uma história para vocês: eu era recém formada e tinha conseguido meu primeiro emprego como professora seis meses depois que saí da faculdade. Um dia, faltando uma meia hora para eu ir trabalhar, eu tive uma briga feia com o cara que eu namorava naquela época. E nós terminamos o namoro e eu fiquei muito abalada. Mas eu precisava ir trabalhar. Para mim, não havia possibilidade de eu não ir porque tinha terminado um namoro. Lembro até hoje da cena: entrei em sala de aula, cumprimentei os alunos, abri minha bolsa, peguei o material preparado, peguei um giz, virei para o quadro e comecei a escrever os pontos que trabalharia naquele dia. Enquanto eu escrevia, a briga tomava conta dos meus pensamentos. Eu comecei a sentir um nó na garganta e uma lágrima silenciosa caiu. Eu terminei de escrever e saí lavar as mãos, como sempre fazia. Voltei e dei minha aula. Ao final, uma aluna perguntou se eu estava triste. Eu sorri e disse que sim. Ela respondeu que esperava que o quer que tivesse acontecido se resolvesse logo, eu agradeci, guardei minhas coisas e saí. 

Isso aconteceu outras vezes. Por esse e outros motivos. Vejam, eu não estou banalizando o sofrimento, só falando sobre o mundo real. Há consequências em faltar ao trabalho, tanto no que diz respeito à qualidade dele, quanto no que diz respeito aos efeitos de ordem prática. Ir trabalhar não foi um ato de heroísmo, mas de responsabilidade. Assim como é um ato de responsabilidade procurar afastar-se das atividades quando elas se tornam impossíveis de serem cumpridas.

Segunda história: eu dava aula em uma turma e uma aluna veio falar comigo. Explicou que semanalmente ela perderia a primeira aula porque ela não conseguiria chegar a tempo, porque a pessoa que cuidava do filho dela só chegava mais tarde. Eu respondi a ela que entendia a situação, no entanto, eu não poderia ignorar que ela faltaria, no decorrer do semestre, uma quantidade de aulas superior aos 25% permitidos. Ela ficou brava e disse que o motivo dela deveria justificar e eu disse: Fulana, eu tenho certeza que se formos perguntar a cada um dos seus colegas se eles teriam alguma razão para não conseguir chegar aqui para a primeira ou mesmo para todas as aulas, eles diriam que sim. Eu inclusive também teria as minhas, ainda assim, estou aqui. Ela assumiu sua condição e desistiu da disciplina. Voltou no semestre seguinte.

Tenho certeza que ao ler essas histórias, alguns podem dizer que eu sou rígida. E eu diria que sou pouco rígida. Aliás, quem já teve aula comigo, faça o favor de se pronunciar e me defender aqui. Se tem uma característica que não me define como professora é a rigidez. Mas tem uma palavra que alguns podem achar que é sinônimo da primeira, e esta sim, eu uso para me definir: rigor. Eu sou rigorosa, sobretudo eticamente. Ser rigorosa não faz de mim brava, ou séria, ou inflexível. Ser rigorosa eticamente faz apenas com que você possa ter a certeza que, sempre que eu notar que você me pede pesos e medidas variados, eu vou deixar claro que é isso que você está fazendo.

E é esse o meu objetivo com essa carta. Dizer a vocês que enquanto vocês não se reconhecerem na condição de sujeitos barrados, vocês sempre se sentirão injustiçados com as condições que a vida assume não apenas na universidade, mas do lado de fora dessa bolha que a gente erra ao construir para vocês. Isso que eu estou fazendo, ao contrário do que vocês podem alegar lançando mão dos conceitos que vocês aprendem em sala de aula, não é naturalizar o sofrimento: ele existe. Assim como existem as condições que os produzem. No entanto, esse sofrimento deve ser dito em primeira pessoa. E não projetada à terceira pessoa que está passando pelo corredor para buscar um dos seus instrumentos de trabalho. 

As condições que produzem esse sofrimento, parte delas, também as sofremos nós. Estamos submetidos, mas não como vocês. Porque vocês podem escolher estudar menos ou mais para uma prova, participar ou não de um projeto, fazer ou não um trabalho de conclusão de curso ou uma iniciação científica, faltar a 25% das aulas, dormir durante elas ou usar o computador para fazer qualquer coisa que não seja aproveitar aquele espaço de formação pago com dinheiro público. Isso significa que o mínimo de controle e comprometimento exigido através de trabalhos, provas, relatórios e prazos é a mínima garantia em relação à responsabilidade que nossa profissão exige quando formamos profissionais que deverão saber como acolher o sofrimento psíquico do outro sem vitimizá-lo. 

O fato de eu admitir que a vida ser feita de escolhas e renúncias não significa naturalizar a opressão do cotidiano e ignorá-la, como fazem os que não avaliam ou que não registram frequência assumindo que vocês são responsáveis pela formação de vocês. Não. Eu também sou responsável. E eu assumi essa responsabilidade imbuída de um desejo em relação a ela que quem já teve aula comigo reconhece em cada aula que eu dou. E que quem faz parte da minha vida não consegue deixar de notar sempre que eu falo sobre vocês e sobre as coisas que a gente discute em sala de aula. Eu sou tão professora, gente...Tão professora que me sinto tentada a responder uma frase em um cartaz que vocês escreveram. Tão professora que estou aqui pegando vocês pela mão e dizendo: vocês erraram. Erraram quanto à forma e quanto ao método.  

Por isso finalizo essa carta dizendo: cresçam. E crescer significa entender que a frustração que a gente sente quando não consegue realizar o esperado não pode nunca ser dirigida ao outro. porque a frustração é resultado direto de uma condição da qual o outro não pode livrar vocês. Essa condição é a condição de castrados. Mas é claro, desde que estejamos sendo éticos em relação ao nosso desejo de nos tornarmos profissionais. E desejo, bonitos e bonitas, sempre vai custar os olhos da cara.

Com carinho sincero (já que de mim vocês nunca devem esperar menos do que sinceridade),

Angela

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